Se eu fosse eu, andaria descalça (embora já tenha sentido meus pés queimarem em asfalto que arde, e tenha comprado na semana passada uma bota XPTO para proteger meus tornozelos nas próximas trilhas)
Tomaria só banho de rio, mesmo já tendo fugido até de água quente quando está muito frio
É que também fugiria do frio… porque me sinto tão viva quando o sol toca a minha pele, que digo odiar o frio, e me escuto odiando parte do que habita em mim
Sol sem filtro solar, luz sem lâmpada, suor sem antitranspirante, escuridão com um milhão de estrelas, janelas totalmente abertas, ventilando tudo o que há por vir… passo o ar-condicionado na maioria das vezes
Dançaria sem vergonha, despretensiosa, sem espelhos, de olhos fechados
Cantaria por vezes bem alto, a todos os cantos, desafinando escutaria prece em meu coração
Sairia sem bolsa, embora já sinta em minhas costas o peso da minha mochila
Andaria com calma (mesmo de coração acelerado), em silêncio (no meio da multidão), toda sentidos… sentindo a praia, o ir e vir das águas abençoando meus pés chatos e cansados, sentindo a floresta, seu abraço de copa grandioso e seu frescor de terra que chora
Se eu fosse eu, estaria em casa cheia, com um filho no ventre e outro no peito
Celebraria a vida em churrascos na laje com samba, ao lado do fogão a lenha e o choro da viola, e ao redor do estralar da fogueira de São João
Estaria fazendo? Costurando, bordando, pintando, plantando, arando, cozinhando, lendo, escrevendo, construindo, transformando, cuidando? Recolhendo e jogando confetes do chão para não acabar o Carnaval?
Se eu fosse eu, escreveria só de lápis porque gosto de sentir o grafite em atrito, e por vezes ter uma segunda chance… reescrever sobre o escrito, reescrever, reescrever, em um processo inacabado de versões… reescreveria tudinho ao contrário só para ter o gostinho, sabe?
É assim quando encontro uma caixa de Bis… saboreio! Saboreio um em pequenas mordidas enquanto outro é devorado inteiro na boca. Tem o que me exige mais gentileza para destacar cada camada sem quebrar e outro que vai inteiro sem mordidas, como uma bala. E quando está frio, recorro ao externo e o aqueço uns segundinhos no micro-ondas (com moderação) e então me lambuzo com o chocolate todo derretido.
Mas em restaurantes, prefiro cardápios de uma página só, com prato do dia é melhor… odeio a dúvida da escolha e a responsabilidade de um prato só entre tantos… Também dou prejuízo em rodízios e em mim mesma por não me atentar aos limites, ou por simplesmente ter espaço para extravasar
Tem dia que quero um motorhome, conhecer o mundo e ir parando aos pouquinhos, quando e onde quiser… há outros em que quero um rancho para aguar todos os dias a minha horta e só contemplar o que brota, o que floresce e morre no mesmo lugar
Se eu fosse eu, sairia na rua com minhas roupas manchadas, furadas, encardidas que me acolhem com tanto conforto na minha casa
Ignoraria as despedidas porque tudo sou eu (e elas me doem tanto…)
Daria sempre o direito de um segundo tempo, um tempo sem as vísceras do inaugural, um tempo em que caiba paz.
Se eu fosse eu, não seria nós? Ou há tantos nós em mim que sem nós não seria eu? Começo a desatar alguns, com amor e paciência (em busca de autocontrole), enquanto na mesma medida aperto outros mais…
Se eu estivesse euzinha, talvez estaria só? No desapego dos meus porque o que é meu não sou eu.
Se eu fosse eu não é eu estou eu. Tem caráter hipotético, inclui a dúvida, e então passo a me sentir pertencendo… e talvez consiga estar inteira, eu.
Regina Reyko Murasaki Hassuo
(escrito como exercício do Curso Sentinelas, inspirado no poema “Se eu fosse eu” de Clarice Lispector)