Jornal do Brasil: Precisamos falar sobre vida e morte com a mesma maturidade

Artigo de Gilberto Scofield Jr. publicado no Jornal do Brasil no dia 17 de junho de 2018.

 

Logo após o falecimento do meu pai, minha analista, Monique Bertrand, me sugeriu a leitura de um pequeno livro lançado em 2016 que, pelo título, me parecia uma chorumela de auto-ajuda: “A morte é um dia que vale a pena viver – E um excelente motivo para se buscar um novo olhar para a vida” (Casa da Palavra). Escrito pela médica geriatra Ana Claudia Quintana Arantes, o livro é uma grata surpresa. Trata-se de deliciosa reflexão sobre a morte – e a vida – e como lidamos com ambas com maturidade e, ao mesmo tempo, leveza. Ana Claudia escreveu o livro após anos de estudo e experiência com Cuidados Paliativos (e virou uma das maiores especialistas brasileiras no tema, que consiste em prover a melhor forma possível de vida ao que resta de tempo em pacientes terminais, se é que eu posso resumir a coisa assim).

O livro é genial. Primeiro, porque nos tira da zona de conforto ao trazer o tema da morte para o foco das discussões. Segundo, por desmistificar a morte, contrapondo-a a uma vida bem vivida. E terceiro porque serve como um poderoso alerta sobre tudo aquilo que se passa pela cabeça de quem está morrendo, especialmente seus arrependimentos, a maioria ligados a uma única e absoluta riqueza da qual ninguém se dá conta até perdê-la: o tempo. Selecionei alguns trechos que me encantaram-perturbaram-emocionaram-iluminaram:

“É impressionante como todos adquirem uma verdadeira ‘antena’ captadora de verdade quando se aproximam de morte e experimentam o sofrimento da finitude. Parecem oráculos. Sabem tudo o que realmente importa nesta vida com uma lucidez incrível. Como recebem acesso direto à própria essência, desenvolvem a capacidade de ver a essência das pessoas à sua volta. Não há fracasso diante das doenças terminais: é preciso ter respeito pela grandeza do ser humano que enfrenta a sua morte. O verdadeiro herói não é aquele que quer fugir do encontro com a sua morte, mas sim aquele que a reconhece como sua maior sabedoria”.

“O ato de cuidar de alguém que está morrendo sem a responsabilidade do autocuidado é, a meu ver, uma expressão clara e absoluta de hipocrisia…Quem cuida do outro e não cuida de si mesmo acaba cheio de lixo. Lixo de maus cuidados físicos, emocionais e espirituais. E lixos não servem para cuidar bem de ninguém. Simples assim”.

“O que separa o nascimento da morte é o tempo. Vida é o que fazemos dentro desse tempo; é a nossa experiência. Quando passamos a vida esperando pelo fim do dia, pelo fim de semana, pelas férias, pelo fim do ano, pela aposentadoria, estamos torcendo para que o dia da nossa morte se aproxime mais rápido”.

“O que mata é a doença, e não a verdade sobre a doença. Claro que haverá um momento de tristeza ao saber-se doente, gravemente doente. Mas essa tristeza é a única ponte até a vida que pode ser vivida verdadeiramente, em ilusões ou falsas promessas de cura. O que mata a esperança não é saber-se mortal, mas sim perceber-se abandonado”.

“Ao longo desse tempo cuidando de tantas pessoas incríveis, percebi que o que faz girar esse eixo de espiritualidade dentro de cada um de nós é o Amor e a Verdade que vivemos com integridade. O Amor que sentimos, pensamos, falamos e vivemos. A Verdade que sentimos, pensamos, falamos e vivemos. Não importa qual é a nossa religião, não importa se acreditamos ou não em Deus. Se a nossa espiritualidade estiver sobre uma base de Amor e Verdade, vivenciados e não somente conceituados, não importa o caminho que escolheremos, a vida dará certo. Sempre”.

Lembrei do tema da morte e do livro lido recentemente na semana que passou ao tomar conhecimento dos suicídios da designer Kate Spade e do chef Anthony Bourdain. Não que o livro de Ana Claudia trate de suicídios ou de mortes assistidas. Longe disso. Mas o livro trata da morte e da vida vivida na sua plenitude. E me espantou comentários na linha “mas tão ricos e bem-sucedidos!”, “viviam a vida que eu queria para mim” ou “com uma família e uma profissão tão bonitas”. A despeito da falta total de sequer tentar um mínimo grau de empatia, eu me perguntava: mas que diabos essa gente sabe da guerra que os outros travam? Como podem medir a felicidade ou “a vida bem vivida” de alguém pelas suas próprias réguas?”

Há em todas essas expressões de inconformismo, recalque e espanto certa soberba indisfarçável. Porque o fato é que pouquíssima gente está preparada para a morte. Pouquíssima gente tem a coragem de discuti-la de forma madura e consciente, sem pesos, sem rancores. Aliás, pouca gente está preparada para a própria vida. E daí me ocorreu uma frase da muito citada e pouco discutida (salve, Benjamin Moser!) Clarice Lispector, frase que a própria Ana Claudia Quintana Arantes cita em seu livro e que as pessoas deviam ter como tela de bloqueio dos seus celulares: “Salve-se quem puder, porque para todas as horas é sempre chegada a hora”. Saudades do meu pai.

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