“O sofrimento de uma pessoa somente é intolerável quando não há ninguém para cuidar dela.”
«Um convite, uma festa. Chego sem conhecer ninguém, além da anfitriã. Pela recepção calorosa dela, percebo que alguns convidados estão interessados em saber quem sou.
Aproximam-se. Fico um pouco tímida nessas ocasiões e tenho dificuldade em começar a conversar. Mais uns instantes e a roda se amplia; a conversa flui. Cada um diz quem é e o que faz da vida. Observo gestos e olhares. Um instinto misteriosamente provocador brota em mim. Sorrio. Finalmente alguém pergunta:
– E tu? Trabalhas com a Fernanda?
–Sou médica.
– A sério? Que máximo! Qual é a tua especialidade?
Segundos de dúvida. O que vou responder? Posso dizer que sou geriatra, e a conversa vai enveredar para o rumo mais óbvio. Três ou quatro dúvidas sobre problemas de cabelo e unhas. O que eu, com a minha experiência, recomendo para retardar o envelhecimento? Talvez alguma pergunta sobre um familiar que parece dar sinais de demência.
Dessa vez, porém, quero responder algo diferente.
Quero dizer o que faço; dizer ainda que o faço com muito prazer, e que me realiza muito. Não quero fugir. Essa decisão interna traz-me uma inquietude e, ao mesmo tempo, uma sensação agradável de libertação.
– Eu cuido de pessoas que morrem.
Segue-se um profundo silêncio. Falar de morte numa festa é algo impensável. O clima fica tenso, e mesmo a distância percebo olhares e pensamentos. Escutar a respiração das pessoas que me cercam. Algumas desviam o olhar para o chão, à procura do buraco onde gostariam de se esconder. Outras continuam a olhar-me com aquela expressão de “Hã?”, à espera que eu rapidamente possa corrigir a frase e explicar que não me expressei bem.
Já fazia algum tempo que eu tinha vontade de fazer isso, mas faltava-me coragem para enfrentar o abominável silêncio que, eu já imaginava, precederia qualquer comentário.
Ainda assim, não me arrependi. Internamente, eu consolava-me e perguntava a mim mesma: “Algum dia as pessoas escolherão falar da vida por esse caminho. Será que vai ser hoje?”
Então, durante um silêncio constrangedor, alguém ganha coragem, esconde-se atrás de uma bolha sorridente e consegue fazer um comentário:
– Caramba! Deve ser bem difícil!
Sorrisos forçados, novo silêncio. Em dois minutos, o grupo dispersou-se. Um afastou-se para conversar com um amigo recém-chegado, outro foi buscar uma bebida e nunca mais voltou. Uma terceira pessoa saiu para ir à casa de banho, outra pediu licença simplesmente e foi-se embora. Deve ter sido um alívio quando me despedi e fui embora antes de completar duas horas de festa. Eu também senti alívio e, ao mesmo tempo, pesar. Será que algum dia as pessoas serão capazes de desenvolver uma conversa simples e transformadora sobre a morte?
Mais de quinze anos se passaram desde esse dia em que saí do armário. Assumi a minha versão “cuido de pessoas que morrem” e, à revelia de quase todos os prognósticos da época, a conversa sobre a morte ganha cada vez mais espaço na vida.
A prova disso? Estou escrevendo este livro, e há quem acredite que muita gente o vai ler”. Porque “Cuidar de alguém é a maior vitória perante a doença e é um excelente motivo para procurar um novo olhar para a vida» *
Eu reitero que vale mesmo a pena ler esta obra “A morte é um dia que vale a pena viver”, da autoria de Ana Cláudia Quintana Arantes, médica especialista em Cuidados Paliativos, recentemente lançado entre nós, pela Oficina do Livro, e reflectir sobre uma problemática tão real quanto emergente, nestes dias em que surgem outras vertentes, outras nuancesde clivagem e distorção do sentido e da dignidade da vida do ser humano, que mesmo no seuterminusainda tem uma beleza acrescentada por quem sabe, por quem acredita, por experiência própria, que a vida vale a pena, mesmo quando o prazo da validade está a chegar ao fim.
*A morte é um dia que vale a pena viver, de Ana Cláudia Quintana Arantes