Ana Cláudia Arantes, 50, decidiu ser médica para cuidar da avó, que tinha uma doença arterial grave e precisou amputar as pernas. “Ela sentia muita dor e clamava a Deus que a levasse, pois achava que não aguentaria tanto sofrimento”, lembra. Ainda assim, a avó conviveu um bom tempo com a doença e resistiu até os 91 anos. Partiu exatamente no dia da colação de grau de Ana Cláudia – que enfrentou, assim, seu primeiro luto. Várias outras perdas de pessoas muito queridas ocorreram desde então. Ao enfrentar um processo agudo e irreversível, o pai saiu da UTI para ser cuidado por uma equipe que Ana Cláudia havia treinado. A irmã mais nova também foi acompanhada pela mesma equipe na fase final do câncer.
Quando uma doença neurológica conduziu a mãe ao último dia de vida, três anos atrás, Ana Cláudia já conseguia enxergar beleza no momento doloroso. “Foi a morte mais linda que já vi”, define. “Ela estava cercada pelas pessoas que mais amava. Fui a última a chegar ao quarto. Peguei nas mãos dela e disse ‘mãe, cheguei’. Ela puxou um fôlego, abriu os olhos, sorriu e deu o último suspiro.”
Em cada nova situação, incluindo duas amigas também vitimadas pelo câncer, Ana Cláudia se sentia gradualmente mais fortalecida. “Ter vivido pessoalmente tantos lutos em situações que envolveram cuidados paliativos consolidou a verdade e o amor à minha prática e à minha vida”, diz.
Formada pela USP (Universidade de São Paulo) com residência em geriatria e gerontologia no Hospital das Clínicas, Ana Cláudia fez pós-graduação em psicologia – intervenções em luto, e especializou-se em Cuidados Paliativos pelo Instituto Pallium e pela Universidade de Oxford, na Inglaterra. Foi também responsável por elaborar e implantar políticas assistenciais e treinamentos em cuidados paliativos no Hospital Israelita Albert Einstein.
Incomodada pelo que via e ouvia na sociedade como um todo – e mais especificamente dentro do próprio universo médico -, ela decidiu que precisava levar a reflexão sobre o fim da vida ao maior número possível de pessoas. Escreveu o livro “A morte é um dia que vale a pena viver”, tornou-se palestrante, organizadora de cursos e professora na The School of Life sobre como lidar com a proximidade do fim da vida.
“A morte não tem exceções, por isso a vida também não deveria ter”, diz, para ilustrar a ideia de que a consciência sobre a mortalidade é o melhor caminho para aprender a valorizar a vida. “Tenho recebido críticas por tornar este cuidado “romantizado”. Mas, de verdade, isso não é nada romântico: é apenas humano.”
Nesta conversa com Universa, Ana Cláudia fala sobre as dificuldades e as recompensas do caminho que escolheu:
Universa: Em que momento a senhora decidiu ter uma atuação que fosse além dos consultórios e hospitais?
Ana Cláudia: Eu não conseguia aceitar ou entender o porquê de os pacientes serem abandonados exatamente quando a doença não tinha mais opção de tratamento, e sofrimento era o que restava. Ficava com o pior sentimento de impotência possível. “Não há mais nada a fazer.” É isso que os médicos e a saúde em geral costumam dizer diante de uma doença que não responde mais a tratamento. E depois disso vem o abandono: não tem mais horário de consulta, a enfermagem não vai mais no quarto. A família entra em colapso e ninguém faz nada para amenizar isso.
Essa é a realidade brasileira. Eu digo que aqui no Brasil não se morre de câncer, se morre de dor. E acontece isso com outras doenças. Apenas 0,3% das pessoas que precisam de cuidados paliativos no Brasil têm acesso a essa assistência. Três em cada mil. Para saber o que eu poderia fazer quando todo mundo dizia que não havia mais o que fazer, busquei conhecimentos para cuidar de pessoas no final da vida, nos cuidados paliativos e depois na psicologia. Decidi que não abandonaria meus pacientes.
Encontrei uma atividade profissional que permite a conexão perfeita entre o conhecimento técnico e o humano. O cuidado paliativo é o cuidado de proteção em relação ao sofrimento que a doença traz, que o adoecimento proporciona.
A medicina, em geral, vê com preconceito a atividade de cuidados paliativos?
Muito. Posso dizer que a dedicação a essa área é um movimento subversivo, quase revolucionário. Fui atacada, várias vezes humilhada e pouco ouvida pela comunidade de profissionais de saúde, que não valoriza a sensibilidade e a humanidade, mesmo quando aliadas a técnica qualificada. Ouvi de um grande professor brasileiro que a medicina paliativa é um jeito romântico de fracassar como médico.
No cuidado paliativo não estamos lutando contra a doença, estamos favorecendo a vida, dentro da realidade possível, da felicidade possível. A doença pode seguir seu curso e a pessoa tem permissão para a morte natural. Entre adoecer e morrer há muito o que fazer pelo bem de quem vive esse processo tão delicado e sagrado.
Há algum tipo de reação padrão quando as pessoas se veem diante da morte?
A doença, quando encontra um ser humano, forma uma expressão única, que é o sofrimento. Cada um tem seu modo de sofrer e demonstrar seus limites.
Aprendi muito a respeitar cada biografia. Para cuidar de alguém que enfrenta seu tempo final é preciso buscar saber muito mais do que a doença que a pessoa tem. A pessoa adoece pelo corpo, mas não é só a dimensão física que sofre. Somos seres complexos, com diversas dimensões – emocional, familiar, social e espiritual, e todas essas acompanham o adoecimento físico, podendo facilitar ou dificultar a expressão do sofrimento como ser humano integral.
Algumas vezes a gente se surpreende com pessoas que sofreram por bobagens a vida toda, mas, no momento em que têm algo realmente grave, conseguem estabilizar, superar, transcender o sofrimento. E às vezes ocorre o inverso. Se a gente fizer a pergunta “como você gostaria de morrer?”, a maior parte das pessoas vai responder que quer morrer dormindo, de repente, sem sofrimento. Talvez seja por que preferem viver uma vida adormecida, desconectada.
A morte só seria abençoada quando se teve uma vida abençoada. Infelizmente, isso não acontece com a maioria. As pessoas não demonstram afeto, não dizem que amam, não pedem perdão, não vivem experiências de felicidade com a frequência que deviam permitir-se viver.
Então, quando surge o diagnóstico de uma doença que ameaça a vida, a pessoa cai na realidade. Para muita gente, a doença se torna uma oportunidade de uma vida com sentido. Mas, por que precisou disso? Porque foi o único jeito de permitir-se pensar na morte. As pessoas que vivem um processo de finitude têm a chance de viver uma vida que consideram ter mais significado e que desejariam ter vivido a vida inteira, mas aí o tempo pode ser curto. Dias, semanas, meses são apertados demais para acolher a vida inteira que não foi vivida.
Que parte da visão ou do conceito sobre a morte a senhora gostaria que fosse mudada na nossa sociedade?
Gostaria que as pessoas não tivessem mais tanto medo de falar da morte. É tabu. Esse medo contribui para que as pessoas não tenham uma vida mais real, mais verdadeira.
Pensar sobre a morte é importante para salvar sua vida como biografia. É uma escolha viver uma vida que faça sentido ou não. Uma vida para ser lembrada como a de alguém que fez diferença no mundo, ou apenas como a vida de mais uma pessoa que simplesmente passou por aqui.
Se você ama alguém, precisa saber perder essa pessoa, e exatamente por isso é preciso amá-la muito. Se você ama a vida, precisa viver sabendo que ela termina, e exatamente por isso é tão necessário honrar a vida, vivê-la intensamente.
Fonte: Universa UOL