A entrevista com a médica Ana Claudia Quintana Arantes, geriatra especializada em cuidados paliativos e autora de livros como A Morte é um Dia que Vale a Pena Viver, Histórias Lindas de Morrer e Pra Vida Toda Valer a Pena Viver, rendeu muitas reflexões. Tanto que nós, do Hora Campinas, resolvemos dividir a conversa em duas etapas.
Nesta última parte ela destaca que sobre a arte de ganhar existem muitas lições. Mas, e quanto a arte de perder? E nossa conversa termina falando de porque ela escolheu ser médica de cuidados paliativos, o que ela aprende com os pacientes terminais, além de falarmos da importância da arte e poesia na sua vida e como ela partilha isso na comunidade Gente Boa no seu perfil no Instagram; @anaclaudiaquintanaarantes.
Hora Campinas: Por que você escolheu ser médica de cuidados paliativos? E do que exatamente ‘falamos’ quando falamos de cuidados paliativos?
Ana Claudia Quintana Arantes– Eu não entendia por que os pacientes eram abandonados exatamente quando a doença deles não tinha opção de tratamento e o sofrimento era absurdo. Busquei conhecimento para cuidar de pessoas no final da vida para que pudesse saber o que fazer quando todo mundo dizia a que não tinha nada para fazer. Foi um movimento subversivo, quase revolucionário. E encontrei esse conhecimento nos Cuidados Paliativos e na psicologia, através do estudo do processo de luto. O cuidado paliativo é o cuidado de proteção em relação ao sofrimento que a doença traz, que o adoecimento proporciona. A doença quando encontra um ser humano forma uma melodia única que é o sofrimento. Cada um tem seu modo de sofrer.
No cuidado paliativo não estamos lutando contra a doença, estamos favorecendo a vida, a felicidade possível na realidade possível. A doença pode seguir seu curso, e a pessoa tem permissão para a morte natural. Entre adoecer e morrer há muito o que fazer pelo bem de quem vive esse processo tão delicado e sagrado em sua vida.
Quais são os maiores aprendizados que os pacientes terminais trazem?
Para cuidar de alguém que enfrenta seus tempos finais é preciso buscar saber muito mais do que a doença que a pessoa tem. Você adoece pelo corpo, mas não é somente a dimensão física que sofre. Somos seres complexos, com dimensão emocional, familiar, social e espiritual que nos acompanham no adoecimento físico, facilitando ou dificultando a expressão do nosso sofrimento como um ser humano integral. Saber de sua própria história é saber do contorno de seu caminho de enfrentamento das condições limitantes de vida. Algumas vezes podemos nos surpreender, pois tem pessoas que sofreram por bobagens a vida toda, mas na hora em que tinham realmente algo grave, se estabilizam, superam e transcendem o sofrimento. Outras não…
Se eu fizer a pergunta: ‘como você gostaria de morrer?’, a maioria das pessoas vai responder que quer morrer dormindo, de repente, sem sofrimento. Talvez seja porque preferem viver uma vida adormecida, desconectada… Não sei. É apenas uma reflexão.
Mas essa só é uma morte abençoada quando se teve uma vida abençoada. E isso não é o que acontece com a maioria, as pessoas não demonstram afeto, não dizem que amam, não pedem perdão, não vivem experiências de felicidade com a frequência que deveriam permitir-se viver. Então, quando você tem um diagnóstico de uma doença que ameaça a sua vida, você cai na realidade, e também pode cair em si.
Você não imagina a quantidade de pessoas que me dizem que a melhor coisa que lhes aconteceu foi o câncer, às vezes sentem-se até culpadas de falar isso, mas a verdade é que a doença se torna uma oportunidade de uma vida com sentido. Por que é que precisou disso? Porque foi o único jeito de permitir-se pensar na morte. Quando a pessoa recebeu o resultado da biópsia percebeu que era mortal. Já era mortal antes do resultado da biópsia, mas foi naquele momento que tomou consciência disso.
As pessoas que vivem um processo de finitude têm a chance de viver uma vida que consideram ter mais significado e que desejariam ter vivido a vida inteira, mas aí o tempo é pequeno. Dias, semanas, meses são apertados para acolher a vida inteira que não foi vivida. Mas é bonito demais ver que encontram sabedoria para fazer as melhores escolhas e aproveitam muito, seja qualquer tempo que tenham, desde que o seu sofrimento seja cuidado.
Dra. Ana, além do seu trabalho como médica você escreve poemas e poesias. Mantém um grupo online aos domingos chamado ‘Gente Boa’. Você costuma reservar um tempo para a sua escrita? E como a escrita ajuda a trabalhar seus desafios diários, suas dores e alegrias?
Para mim não há outro caminho para compreender, lidar e enfrentar a realidade que não seja pela arte. Muita gente boa já chegou nessa conclusão, bem antes de mim. Já sei que ‘o médico que só sabe de Medicina, nem Medicina sabe’, como sabia Abel Salazar.
A arte abre seus olhos, sua escuta, sua percepção de mundo, interno e externo.
Isso tudo nos serve para compreender a complexidade do sofrimento humano, que é a minha área de cuidado e dedicação. Muito da arte neste mundo foi produzida através do sofrimento. E, justamente, foi através do sofrimento que as obras mais belas foram feitas! Beethoven surdo, Van Gogh deprimido, Renoir com doença reumática, Matisse com câncer avançado. Dizem que para escrever poesia você tem de ter descido ao inferno ao menos uma vez. Quem vê as obras sabendo isso, enxerga além do óbvio.
Percebi que a vida só precisa fazer sentido do lado de dentro. E do lado de dentro, sou poema. Nas horas vagas sou médica, e muitas vezes chego a pôr em receituário as orientações de tratamento complementar de poesia para meus pacientes.
E como isso funciona! Assim, nos pensamentos vagueantes das reflexões sobre a vida e a morte, fui desenhando meu próprio horizonte de letras combinadas com roupa de domingo: a poesia. Olhando para as dores de alma, para os medos humanos e desumanos, para a coragem da fragilidade e para o reencontro do amor pela vida é que me engravido de versos e vou parindo a poesia pelos dias feitos de dias.
Kátia Camargo é jornalista e conheceu o trabalho da médica Ana Claudia Quintana Arantes no TEDx que pode ser acessado por aqui.
Fonte: Hora Campinas