Hora Campinas: A morte é um dia que vale a pena viver – por Kátia Camargo

Por muitos anos tive medo da morte, de falar e pensar nesse tema. Lembro que a morte me assustava desde a infância e tinha medo de perder as pessoas que eu amava. Esse medo não me blindou das inúmeras despedidas nesse caminhar chamado vida.

Já adulta me deparei com um TEDx da médica Ana Claudia Quintana Arantes, que é geriatra e especialista em cuidados paliativos, uma área da medicina que acompanha os últimos dias de uma pessoa.

Logo depois mergulhei na leitura dos livros dela: A Morte é Um Dia que Vale a Pena Viver, Histórias Lindas de Morrer e recentemente Pra Vida Toda Valer a Pena que trata do envelhecer com alegria. Descobri também que ela está preparando o segundo volume de A Morte é um Dia que Vale a Pena Viver.

Fui atrás da Dra. Ana para saber mais sobre o olhar dela a respeito de algo que muita gente foge. Ela gentilmente abriu espaço na agenda para essa conversa tão necessária e inspiradora. De tão potente, resolvemos partilhar na íntegra a entrevista, mas em duas etapas para poder ser apreciada com a intensidade que a vida pede.

Nesta primeira parte ela fala sobre o que é a morte, seus três livros que tratam do assunto e de envelhecer com alegria e como trocar o ‘final feliz’ pelo ‘durante feliz’.

Na coluna da próxima semana, a conversa navegará pelos aprendizados de quem está no dia a dia dos pacientes terminais, sua conexão com a arte por meio de poemas e poesias que escreve e por que escolheu ser médica de cuidados paliativos.

Hora Campinas: Dra. Ana, para você o que é a morte?

Ana Claudia: A morte na verdade é parte da vida, e acelera a compreensão do que realmente é importante de ser vivido dentro dela. A morte pode te trazer a consciência da vida que vale a pena viver. Não existe escolha entre morrer e não morrer, mas existe escolha entre viver bem e não viver, entre saber o que fazer com seu tempo ou desperdiçá-lo. Você pode não falar da finitude, mas haverá mesmo assim o fim, pode não falar da morte, mas vai morrer como todos, como qualquer pessoa. Isso é belíssimo saber — não há privilégios, não há punições: é humano morrer. Conversar sobre a morte, deixar virem reflexões sobre o sentido de morrer e entregar-se aos sobressaltos de sentimentos difíceis são necessários para as reflexões que eu gostaria que nascessem quando abordo este tema. Todos nós vamos morrer um dia. Mas, durante a vida, nos preparamos para as possibilidades que ela pode proporcionar. Sonhamos com o nosso futuro e vamos à luta. Sonhos tão humanos de ter uma carreira, uma família, um amor ou vários, filhos, casa própria, viagens, ser alguém na nossa vida ou na vida de alguém. Buscamos orientação somente para as coisas mais incertas. Quem garante que vamos ter sucesso na carreira? Quem garante que encontraremos o amor da nossa vida? Quem garante que teremos filhos ou não? Quem garante? Ninguém garante nada sobre essas possibilidades. Mas a morte é garantida. Não importa quantos anos viveremos, quantos diplomas teremos, qual o tamanho da família que formaremos. Com ou sem amor, com ou sem filhos, com ou sem dinheiro, o fim de tudo, a morte, chegará.

E por que não nos preparamos? Por que não conversamos abertamente sobre essa única certeza? O medo, os preconceitos, a fragilidade que essa conversa expõe são maiores do que a nossa vontade de libertação desses temores. Há tempos na nossa vida em que as palavras não chegam. Tempos em que entramos em contato com o que há de mais profundo em nós mesmos, buscando respostas, sentidos, verdade.

O tempo de morrer é um desses momentos dos quais o escritor Rainer Maria Rilke, em Cartas a um Jovem Poeta, traz aquela que é, na minha opinião, a mais sublime explicação para o que vivenciamos no final da vida; seja como expectadores, seja como protagonistas, a morte é um espaço onde as palavras não chegam. Tem momentos que vivi acompanhando pacientes na sua fronteira da vida que jamais poderiam ser traduzidos fielmente em palavras. O indizível é a melhor expressão da experiência de vivenciar a morte. Na vida humana, talvez somente a experiência de nascer possa ser tão intensa quanto o processo de morte. E talvez seja por isso mesmo que tememos tanto esse tempo. O mais inquietante é que todos nós passaremos por ela ou acompanharemos a morte de quem amamos.

Seus dois livros ‘A Morte é um Dia que Vale a Pena Viver’ e ‘Histórias Lindas de Morrer’ falam sobre a morte, mas trazem reflexões para aproveitar a vida agora, independente dos desafios que fazem parte do trajeto. Já em seu novo livro, ‘Pra Vida Toda Valer a Pena’, você fala sobre o envelhecer com alegria, mas também toca no tema da morte, porque o envelhecer também nos aproxima da finitude. Você acha que de um modo geral fugimos desses assuntos? Falar sobre isso ajuda a acolher nossos medos?

Gostaria que as pessoas não tivessem mais tanto medo de falar da morte. Na nossa sociedade, esse tema é um tabu, como se fosse um segredo feio. Esse medo contribui para que as pessoas não tenham uma vida mais real, mais verdadeira. Se você tem medo da morte, deveria buscar entender e conversar sobre esse medo, para conseguir encarar a morte de outra forma. A morte, na verdade, é parte da vida, e acelera a compreensão do que realmente é importante ser vivido. A importância de conversar sobre a morte é tomar consciência do tempo de vida. Preparar-se para a morte é viver, com seus riscos e com suas consequências. Pensar sobre a morte é importante para salvar sua vida como biografia. É uma escolha viver uma vida que faça sentido ou não. Uma vida para ser lembrada como a de alguém que fez diferença no mundo, ou apenas como a vida de mais uma pessoa que simplesmente passou por aqui. Conhecer mais sobre a morte, sem tratá-la como um segredo feio, ajuda a despertar a consciência sobre a vida que vale a pena viver.

“A morte, na verdade, é parte da vida, e acelera a compreensão do que realmente é importante ser vivido” – Foto: Arquivo Pessoal

No seu mais recente livro, ‘Pra Vida Toda Valer a Pena Viver’, você usa o deserto como uma metáfora para falar do envelhecer e de como estamos nos preparando para chegar lá. Dá para se preparar para envelhecer bem? De que forma?

É natural que, para a maioria das pessoas, o envelhecer esteja ligado à questão física, acima de tudo. É obvio que temos que nos cuidar: buscar uma alimentação equilibrada, não ser sedentário, exercitar sempre nossos músculos, mas não só. Temos também que fortalecer o cérebro, e isso se faz aprendendo coisas novas. Se fica mais difícil aprender, temos que usar a teimosia a nosso favor, e não desistir. Cantar, praticar instrumentos, fazer um novo ponto no tricô, são aprendizados que criam novos caminhos no cérebro e isso minimiza os impactos da perda de cognição. A meditação é outro recurso.

Ela é uma ferramenta de estabilidade emocional. Quem medita com regularidade tem uma espessura de córtex maior, o que significa neurônios “bombados”. Mas envelhecer não é só um processo fisiológico, é também psicológico, intelectual e cultural. Como eu entendo, envelhecer bem, ou o ‘envelhecimento de sucesso’, tem a ver com a qualidade das conexões que você conseguiu construir ao longo da sua vida. Se você não tiver uma estrutura emocional bem construída, pode ter o melhor nível de colesterol possível, uma glicemia impecável, peso adequado, tudo certo fisicamente, pode até ser um triatleta, mas, se você não entender o valor do seu corpo, respeitar o seu corpo nesse momento da sua vida, nada disso adianta.

Eu incentivo os meus pacientes a cultivarem relações saudáveis, cuidarem delas com a mesma dedicação com que cuidam de outras pessoas e que procurem ter hábitos saudáveis, sem deixar de fazer aquilo que têm vontade e que traz felicidade para eles. Gastamos energia demais na luta contra a passagem do tempo, ao invés de viver de uma forma mais plena. E a única maneira de viver plenamente é você encontrar a sua melhor versão em cada fase da sua vida. O envelhecer é um processo que começa quando nascemos e o tempo nos dá a possibilidade de construir, reconstruir, de se descobrir, descobrir o outro, rever posturas, admitir fracassos, refazer conexões perdidas, sentir que a vida vale a pena, que ela é muito boa.

As pessoas felizes se orgulham de tudo que deixam de legado para o mundo, do que puderam transformar no mundo e no coração de quem amam. Também se orgulham de perceber que são amadas, que vão fazer falta, uma falta gostosa, uma saudade de verdade. Sentem orgulho do que foram e do que ainda são e pela coragem de enfrentar a própria finitude.

Você aponta no livro ‘Pra Vida Toda Valer a Pena Viver’ que devemos falar no ‘durante feliz’ e não mais no ‘final feliz’? Esse seria um guia do bem-viver independente da idade cronológica?

Tomar consciência do tempo de vida. Preparar para a morte é viver. Um dia ruim é um dia ruim. Vai passar… Viver a vida com o que ela tem para oferecer. Pensar sobre a morte é importante para salvar sua vida como biografia. Ser livre, viver o que tem para viver. O tempo vai acabar em algum momento, aproveite o que a vida está oferecendo. Vejo na minha prática alguns pontos comuns entre as pessoas que conseguem ter paz nos momentos finais — são pessoas que viveram uma vida muito legítima, não se cobraram além da conta, erraram, mas reconhecem que fizeram o seu melhor e tinham autocompaixão, sem serem muito autocríticas. O ser humano é o único animal que tem consciência de si. Mas não nascemos sabendo ser humanos. É um processo de aprendizado ao longo de toda a vida, e esse processo é potencializado pelo envelhecimento. Não queremos perder essas últimas aulas…

O sucesso da vida é envelhecer. Se você envelhece é porque não morreu, é uma alternativa a morte. A vida precisa ser valorizada. Precisa ter consciência do seu tempo. A pessoa que envelhece é aquela que se prepara todos os dias para viver sua finitude. A curiosidade pela vida, para buscar mais sabedoria.

 

Kátia Camargo é jornalista e acha bonito como a canção Epitáfio, dos Titãs consegue fazer uma conexão bonita entre a morte e a vida.

Fonte: Hora Campinas

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