Autora do best-seller “A morte é um dia que vale a pena viver”, a médica geriatra e fenômeno na web Dra. Ana Claudia Quintana Arantes participou em 2021 do Encontro de Enfermagem, evento promovido pelo Complexo Hospitalar Unimed Nordeste-RS. Em uma videochamada, ela conversou conosco, entre outros temas, sobre como tem enfrentado a pandemia, sobre home office e sobre morte, assunto com o qual ela lida tão bem. Confira:
UNIMED: Como ajudar as pessoas que estão vivendo o luto coletivo hoje em dia, seja porque perderam o emprego, seja porque estão em home office e vivem o luto da falta de relacionamento no trabalho, por exemplo? Tem uma rota de fuga pela qual podemos seguir? O que podemos dizer para as pessoas que estão com um familiar na UTI, que perderam um familiar ou mesmo que estão com Covid neste momento e não sabem como a doença vai evoluir?
DRA. ANA: Na verdade, não tem como a gente minimizar o que está acontecendo. Realmente, o que está acontecendo é muito sério, grave, desgastante, complexo. Tem momentos em que a gente diz: “Não aguento mais”. E não tem a opção “não aguenta mais”. Porque, se você diz que não aguenta mais agora, daqui a pouco você terá que trabalhar. Se você está trabalhando, você não aguenta mais trabalhar em casa. Se você perdeu o emprego, você não aguenta mais porque não sabe se vai conseguir outro emprego. O fato é que você não precisa aguentar o que vem por aí tudo de uma vez. Você tem que aguentar hoje. A estratégia que eu tenho utilizado é [a que se relaciona com o] como eu lido com o hoje. “Ai, mas eu vou ter que ficar a semana inteira.” Vai. Mas você não tem que ficar todos os dias ao mesmo tempo. Como é que eu lido com o estresse, com meu desgaste hoje? Se eu estou com um familiar internado, o que eu posso fazer? Eu posso escrever para esse familiar [se ele estiver consciente e puder interagir]. Eu posso escrever para outras pessoas da família dando notícias. Eu posso me envolver em um grupo de oração. Eu posso tentar aprender mais sobre a doença, tentando interagir com o médico. Não é todo mundo que vai ter interação com o médico como eu tenho, por exemplo. Eu mesma estou com um familiar internado [com Covid]. Trinta por cento dos problemas que a gente enfrenta com ele [o familiar] dizem respeito à equipe. Está todo mundo cansado. Para mim, o meu familiar é único. Mas para o médico que está cuidando dele desde o começo da pandemia ele é só mais um. E o médico não aguenta mais ver uma pessoa que tem aquela sequência: entra com tosse, depois cai a saturação, vai para o cateter, depois vai para a máscara, BiPAP, para o alto fluxo, colhe exame todo o dia, vai aumentando o PCR e vai para o tubo.
UNIMED: Não se sabe muito da doença, mas se sabe como ela progride.
DRA. ANA: Quando o paciente chega ao pronto-socorro e diz “Estou com tosse, estou com Covid”, você olha para ele e vê tudo o que vai acontecer. Isso é uma coisa muito desgastante. Porque, cada vez que você vê o início do problema, você já identifica o problema inteiro. As pessoas que estão lidando com a perda, perdem. É terrível lidar com isso. Não dá para minimizar. A pessoa perdeu alguém da família. Sem notícias. Teve um senhor que a filha dele foi para o hospital. A família, durante cinco dias, não recebeu notícia nenhuma. Depois, no sexto dia, recebeu uma ligação da assistente social dizendo que a paciente estava melhorando. E no dia seguinte ela morreu.
UNIMED: E foi tirada, sem velório, sem nada. A pessoa some.
DRA. ANA: Ela está em um saco preto. Não tem como amenizar. Isso é traumático. E isso vai durar. O nosso pior problema da pandemia, o mais longo, o mais trabalhoso vai ser depois, que são essas pessoas que estão em processos de luto ou que estão psiquiatricamente comprometidas por conta de violência doméstica, por conta da fome, por conta do medo de pegar doença. Nós vamos ter muitas consequências. Mas a questão é: como eu lido por dia, eu tenho que encontrar no meu dia momentos em que eu sei que eu sou eu. Como fazer isso? Você gosta de ver futebol? Então, coloca na TV futebol. Você gosta de levantar peso? Então, você vai fazer isso. Você gosta de um jardim na varanda, você tem um animal de estimação, você tem um livro que você vai ler e vai poder sair da realidade? São coisas que te conectam com alguma coisa que te deixa forte. E isso você tem que fazer todo dia. É um banho que você vai tomar? É sentar e preparar um jantar para você mesmo, ao invés de sempre só comprar comida? Você tem que encontrar em cada um dos seus dias um espaço onde você se conecta com quem você é para além do momento que você está vivendo. Porque isso é para você voltar para o seu eixo. Aí você consegue atravessar o dia. E vão ter dias mais fáceis e dias mais difíceis. Eu penso que a estrutura de saúde mental tem que ter a conexão com as pessoas. A gente pode estar no distanciamento físico, mas não pode ter distanciamento social, mesmo que para isso tenhamos uma interface tecnológica. Estamos em um distanciamento físico, mas não estamos sozinhos.
UNIMED: Às vezes, quem atua na linha de frente está trabalhando tanto e fica desmotivado, pois faz, faz e faz, mas parece que nada muda, coisa que não ocorre com pacientes com outras doenças.
DRA. ANA: Muda totalmente, porque são pessoas diferentes, só que você olha a paisagem e você vê a paisagem sem individualizar. Milhares de pessoas passaram pelo pronto-socorro com a mesma queixa que o meu familiar [no dia da entrevista, Dra. Ana estava com um familiar internado com Covid-19]. Mas, quando ele passa, é a primeira vez. Os profissionais da saúde olham para ele como “todos”. Então, quando o profissional diz: “É tudo igual”, está dizendo que a cena se repete. Mas consegue identificar que tem diferença, quando ele se aproxima do doente e diz: “Quem é você? Do que você tem medo?”. É a primeira vez que vai atender àquele doente. Ah, mas já atendeu a 15 pacientes hoje, para fazer a mesma coisa. Mas foram 15 eventos únicos.
UNIMED: Mesmo que eles não tenham tido sucesso.
DRA. ANA: Não é porque ela vai morrer que você vai deixar de cuidar. E aí se você põe valor no cuidado, você não considera isso desperdício. Se você põe valor no resultado de cura, você vai achar que é pouco. É como se você pegasse muitas pérolas, você tem que descobrir qual é a que vai ficar com você, que é aquele paciente que vai ficar curado. Mas você não sabe. Então, você tem que cuidar de todos.
UNIMED: E em relação às crianças, eu percebo também que elas não estão sabendo lidar, às vezes, com algumas coisas. Elas veem a morte nos telejornais, por exemplo. E aí já me disseram, então, para não deixá-las assistir ao telejornal em casa. É melhor, de fato, não deixá-las assistir a jornais, protegendo-as desse luto todo, ou elas devem já ser apresentadas para tudo isso.
DRA. ANA: O telejornal é tóxico até para a gente, não é tóxico só para as crianças. E não dá para agirmos com as crianças como fazíamos antes, porque, antes, não se falava sobre a morte. A criança tem um peixinho lá, o peixinho morre, você troca de peixinho, para não ter que entrar em contato. E aí deu essa loucura agora, porque tem muita gente que vai estar chocada, porque as pessoas morrem, porque as pessoas já morrem há muitos anos, e você nunca quis falar sobre isso. Mas aí morre metade da sua família. Você nunca falou sobre isso, aí você sofre muito mais. Então, quando você fala com a criança, se a criança tem condição de entendimento e você quer puxar esse assunto, fala assim: “Você sabe o que é morte? Gente, vamos falar sobre o que você acha de tudo isso que está acontecendo”. E tem um lado bom da história, que é o convívio com o pai e com a mãe. Se o pai e a mãe forem pessoas lúcidas, orientadas e com saúde mental, porque, é claro, que tem pai e mãe que abusam do filho. Mas, se o pai e a mãe têm saúde mental para ser pai e mãe, [estamos diante de] uma geração que vai ter experimentado um convívio com os pais que nenhuma outra experimentou na vida. Então, quer dizer, os filhos vão ter uma estrutura de relacionamento com os pais muito melhor do que se estivessem na escola. Porque eles convivem com os pais. Pode-se ter uma rotina até de trabalho. “Papai está trabalhando casa, então, o horário do papai é assim: às 10h, a gente faz um intervalo, tem o recreio, merenda, aí a gente volta, depois tem a hora do almoço, só que o papai está na escola integral”. E aí vão fazer ginástica, porque é como se fossem ao clubinho de futebol, natação e tal. Você planeja a atividade deles como se estivesse no trabalho. E eles não vão ficar se empoleirando, esmurrando a porta. Você estabelece as regras dos intervalos, ensina a ver o horário. “E aí, ó, se o papai se esqueceu de sair pra merenda, você vai lá e bate à porta.” As crianças precisam de tarefas que façam sentido pra elas. Que sejam lúdicas. E elas vão participar da realidade da pandemia de um outro lugar que não é o sofrer alucinadamente. Eles vão esquecer isso. Imagina, o que você lembra que você sofreu quando você tinha oito anos?
UNIMED: E nós também vamos?
DRA. ANA: Eu espero que a gente não se esqueça de fazer a escolha pela bondade, da compaixão, da responsabilidade pela sua própria vida. Eu espero que a gente não esqueça isso.
UNIMED: E de viver a vida sabendo que ela tem uma finitude, valorizando um pouco mais as coisas, talvez?
DRA. ANA: Exatamente. Eu espero que a gente não esqueça.
UNIMED: Houve uma abertura bem grande nos últimos dias, assim as coisas parecem que estão voltando ao normal, com as pessoas de máscara. A economia tem que girar, tem toda essa outra coisa. Mas algumas pessoas dizem que não conseguem entender como é que, com gente ainda morrendo, ao mesmo tempo a gente age normalmente, indo trabalhar, voltando, fazendo supermercado, enfim, levando a vida normalmente. Levar a vida normalmente é um ato de egoísmo ou é uma proteção?
DRA. ANA: Todo mundo tem uma desculpa pra isso. Tudo que põe em risco a sua vida e a das pessoas que você ama não é normal. Se você vai agir normalmente e vai se colocar em risco, vai colocar as pessoas em risco, então, você não é normal. Isso não é saúde mental. Uma pessoa com saúde mental hoje em dia é uma pessoa que se responsabiliza pelo seu cuidado e pelo cuidado do outro. Então, aquele que vai ao boteco, que vai à balada, que vai fazer aglomeração e falar que isso é busca de saúde mental não precisa nem buscar porque não vai encontrar, já não tem saúde mental. Isso não é saúde, isso é imprudência, isso é negligência, isso é crime. “Eu não aguento.” Então, vá procurar ajuda. Vá se tratar. A pessoa já não tem saúde mental, e a saúde mental não está na implantação do risco coletivo. Não está, não tem saúde mental no risco coletivo.
UNIMED: Mesmo sabendo que vamos morrer um dia, damos bola para coisas pequenas no dia a dia, que não teriam importância alguma. Como podemos tirar uma lição, sem nos esquecer disso tudo tão cedo?
DRA. ANA: Vai ser um exercício ativo. Não vai ser uma coisa automática. Você tem o direito de se irritar por bobeira? Todo mundo tem, eu me irrito também, todo mundo se irrita por uma bobeira. Mas você não perpetua a irritação. Você fala: “Que saco, essa internet não pega, eu me esqueci de fazer o relatório”… Tudo isso é bobagem perto de quem está em um hospital. Então, a gente relativiza. Quando relativizo, posso cair numa besteira. Eu posso relativizar e falar assim: “Pelo menos eu não estou intubada como ele, eu não vou esquentar, eu não vou fazer relatório, eu não vou me interessar e responder e-mail, não vou entrar na internet, não vou resolver nada”. Então, isso também não é saúde, porque eu tenho que valorizar os problemas que eu tenho. Se minimizar seus problemas, você não lida com eles. Então, você tem que lidar, mas você lida como quem tem problemas, não como quem pertence a eles. É uma relação de poder que você tem sobre seus problemas: você deve determinar quando você vai resolver. Se você tem uma relação de vitimização, acha que seus problemas te engoliriam. Mas aproveitando o gancho do poder que a gente tem sobre determinadas coisas, mas não tem sobre a morte. Eu penso assim: a morte, ela acontece. Então, algumas coisas podem estar afetando as pessoas, porque elas estão perdendo algum controle sobre isso, sobre a vida, por exemplo. Eu sou organizada, eu tenho controle sobre isso, eu ponho máscara e tal, só que, lá pelas tantas, a morte surpreende, porque ela não está sob o nosso controle. Isso pode gerar nas pessoas, por exemplo, algum transtorno, um TOC, alguma coisa, uma crise de ansiedade, porque você perde o controle. Porque, na verdade, quando buscamos o controle, estamos dizendo que nós não sabemos lidar com o desconhecido. Como isso tudo que está acontecendo não tem precedentes, mas a gente sabe o que vai acontecer depois, tudo é na base da impressão. Hoje, não temos essa informação [sobre os rumos desta pandemia]. As gerações futuras terão essa informação desta pandemia, que tem um registro documental muito mais potente do que a peste que matou setenta milhões de pessoas [no passado]. As gerações futuras, daqui a cinquenta anos, vão dizer: “Nossa, em 2020, teve uma demora de dez anos para a economia se restabelecer e as pessoas conseguirem se relacionar melhor. As crianças melhoraram, mas foram vinte anos, foram duas gerações”. Elas vão saber. Então, o não saber é potência, porque nós podemos escolher. O desconhecido te dá potência. Você pode. Porque a gente pode escolher. Como? Pode descobrir. Eu posso escolher fazer parte do grupo de ajuda. Você é jornalista? Você sabe os grupos que estão ajudando? As pessoas pedem ajuda, você indica. Então, isso já é ajudar. É você encontrar, uma pessoa ajuda a outra. Isso dá sentido ao seu tempo, mesmo que seja um tempo que está difícil de viver.
Fonte: Blog Unimed Nordeste RS