Na recente conferência que deu em Leiria disse que “os profissionais de saúde que se apropriam dos cuidados paliativos jamais experimentam o fracasso”. O que quis dizer?
Quando decidimos ser um profissional de saúde, temos a pretensão de vencer a morte. Ou seja, de trabalhar a favor da vida. Na nossa formação como médicos somos ensinados a direccionar todos os esforços para curar uma doença. Pelo que, quando a doença a não tem cura, sentimos o fracasso. Será que usei todas as medicações possíveis? Será que escolhi o tratamento correcto? Cuidei o paciente de forma errada? O paciente está a morrer e eu em sofrimento por ter fracassado na luta contra a morte. Em cuidados paliativos nunca se tem percepção de fracasso. Consegue-se cuidar do sofrimento da pessoa em todos os momentos da doença. A fantasia de que somos os únicos responsáveis pela felicidade do paciente sai de cima dos nossos ombros. Libertamo-nos dessa cruz, porque somos parte dos instrumentos que o paciente tem ao seu dispor para viabilizar a sua felicidade. Por outro lado, quando você sabe de cuidados paliativos, consegue olhar também para o sofrimento da família e ajudar a que passe de um estado de sofrimento a instrumento de cuidado. Em cuidados paliativos, aprende- se a ouvir as perguntas difíceis de pacientes e famílias. Habitualmente, quando o doente pergunta se vai morrer, o médico pede para pensar positivo, diz que a medicina avançou muito e que pensar na morte vai atrapalhar o tratamento.
O que deve, então, responder?
Pode conduzir a conversa pelos medos do paciente. Isso permite ao doente ir a um lugar dentro de si onde nunca entrou e no qual não entraria sozinho. Para falar do sofrimento da morte, o doente não pode estar sozinho nesse quarto escuro. É preciso ajudá-lo a perceber os seus medos e que sabemos como o ajudar. Se conseguirmos isso, o doente passa a respeitar o tempo da morte e a olhar para mim, não como alguém que vai resolver o problema dele, mas que acredita que ele é capaz de passar por aquilo, atravessando a jornada que tem de fazer. Portanto, nunca me vou sentir fracassada.
Trabalha em cuidados paliativos há mais de 25 anos. O que a fez enveredar por esta área?
Fui para Medicina porque queria aprender a cuidar do sofrimento. Também por questões familiares. Havia na minha família um histórico de sofrimento físico e emocional. Entrei na melhor faculdade de medicina do Brasil, considerada uma das melhores do mundo, mas ninguém me ensinava isso. Foi um período muito sombrio. Nessa época, os cuidados paliativos eram quase inexistentes. Fiz uma paragem nos estudos, por razões familiares, mas também por sentir que a minha escolha tinha perdido sentido. Regressei e decidi seguir geriatria porque pensava que ao envelhecerem as pessoas se aproximariam da morte com menos sofrimento. Mas não, o sofrimento existe em todas as faixas etárias. Dentro da geriatria e da gerontologia, tive a possibilidade de ampliar o meu conhecimento em cuidados paliativos. Em 2007, comecei a acompanhar doentes em fim de vida.
Que ensinamentos lhe tem trazido essa experiência?
Uma característica minha, que nunca quererei perder, é a minha capacidade de ser inocente diante de cada história. Estar junto de um paciente, que posso ajudar, passo a passo, sem saber onde vai chegar, é algo maravilhoso de viver. O meu primeiro livro – A morte é um dia que vale a pena viver – foca-se num modo de fazer. No meu segundo livro – Histórias lindas de morrer – conto histórias dos pacientes. Ou seja, o que acontece quando se faz. Fica muito claro que a aprendizagem vem daquilo que fui experenciando. Quando eu aprendo, modifico a próxima história. Consigo interferir, não no desfecho, mas no processo de vida daquela pessoa, que consegue sentir-se realizada a cada alívio do sofrimento, a cada coragem que ela percebe que tem.
A morte é um tabu? Por que é que isso acontece?
É um tabu falar sobre a morte. Mas a morte não é um tabu, porque um tabu pressupõe uma escolha. Por exemplo, há o tabu do sexo ou da droga. Você pode querer ou não. Com a morte não há sim ou não. Vai acontecer. Não existe ‘e se eu morrer’, mas sim o ‘quando eu morrer’. A dificuldade de enfrentar a morte acontece por não se saber lidar com a vida. Ou seja, o não saber lidar com a vida faz com que as pessoas não queiram falar sobre a morte. A pessoa quer ter uma vida eterna porque ainda não aprendeu a lidar com a vida.
É por isso que diz que, se tivéssemos uma relação melhor com a morte, saberíamos fazer escolhas melhores, mais lúcidas e pensadas.
Sem dúvida. Há um vídeo meu em que desafio as pessoas a fazer uma lista de cinco problemas. Imagine-se que nessa lista aparece a máquina da roupa estragada, um cano roto em casa, o salário atrasado, a relação afectiva a atravessar um momento difícil, a doença do pai, a inveja da cunhada, a chata da irmã. Se só tiver uma semana de vida, qual será o problema da lista que, de facto, merece atenção? Provavelmente nenhum. Quando muito, um e será aquele a que a pessoa precisa, de facto, de dar atenção. Essa percepção clara de que a sua vida pode terminar, faz com que você tenha mais discernimento, sem ficar angustiada.
A entrevista completa está no site do jornal (clique aqui).
Fonte: Jornal de Leiria